Jorge Lucas, de Além da Ilusão, e o simbolismo de viver um delegado negro nos anos 40: “Contraponto”

Expoente na dublagem brasileira, ator também dá dicas sobre esse mercado


02 de maio de 2022 01h18

Foto: Márcio Farias

Por Luciana Marques

Intérprete do delegado Salvador, em Além da Ilusão, Jorge Lucas vê uma simbologia forte no papel. Através de pesquisas, ele soube que só haviam quatro delegados negros na década de 40. “O delegado Salvador é um contraponto. E é como eu enxergo a tudo o que a minha raça está acostumada a viver, ser oprimida pela autoridade. Não que ele seja um opressor, não é, mas ele representa ali a lei. E é muito bom mostrar isso”.

Com 30 anos de carreira, Jorge Lucas passou a atuar agora com mais frequência em novelas. Em 2019, se destacou como o médico Mauri, em Bom Sucesso. Com formação teatral, se tornou um dos expoentes da dublagem no Brasil. Ele é a voz de Vin Diesel, como o Dom Toretto, da sequência Velozes e Furiosos. E já dublou estrelas de Hollywood, como Johnny Depp, Jamie Foxx, Matt Damon, Ben Stiller e Mark Rufallo. “Dublagem é trabalho de ator, não é vaudeville, não é ter voz bonita”.

Como tem sido dar vida ao Salvador nessa novela tão linda da autora Alessandra Poggi? A palavra que melhor define viver o delegado Salvador em Além da Ilusão é encanto. É uma novela tão bonita, tão bem produzida e está agradando muito o público. Para nós que fazemos é um prazer enorme falar o texto da Alessandra, levar para os anos 40 contextos tão contemporâneos. Ela é uma grande autora, muito sensível. E é lindo poder conviver e testemunhar todos os meus colegas, de todas as áreas, da iluminação ao figurino, do cenário à maquiagem e caracterização, da direção a nós do elenco, brilhando, dando o seu melhor, com tanta disposição, carinho, talento. E é muito importante nesse momento que vivemos no mundo, ter uma produção assim, em que a arte se mostre tão poderosa, tão linda, tão bem feita.

Como é poder interpretar um dos quatro delegados negros dos anos 40? Dar vida a esse delegado negro na década de 40, no interior do Rio de Janeiro, é uma honra. Eu tenho muita gratidão ao universo por trabalhar com a minha arte. E é uma honra representar esses quatro delegados negros, pelo menos catalogados nesse período no Brasil, e estar ali e constar. Não só para mim como ator negro e meus colegas todos, mas para toda a coletividade dos afrodescendentes brasileiros. E eu acho muito importante que personagens negros sejam contextualizados nas histórias, na teledramaturgia, na cinematografia, no teatro, para que mais crianças, jovens, adultos e terceiras, quartas e quintas idades também possam se enxergar. O delegado Salvador é um contraponto. E é como eu enxergo, a tudo o que a minha raça está acostumada a viver, ser oprimida pela autoridade. Não que ele seja um opressor, não é, mas representa a autoridade. A Alessandra coloca isso no texto. Ele diz: “Eu mando nessa cidade”. Então, isso é muito importante. Ele é a lei, mas sem ter autoritarismo. O delegado Salvador tem essa certeza, ele não se rebaixa diante de um fazendeiro rico ou de um industrial rico. Então, ter essa representatividade é muito importante.

Foto: Márcio Farias

O Salvador pode ser um trunfo que ajudará Davi (Rafael Vitti) a provar a inocência dele? O Davi é um fofo, um herói. Mas é uma história de televisão, um folhetim. Então, que em alguns momentos, o delegado Salvador vai perturbar um pouquinho o Davi. Mas em outros momentos vai ajudar. Para saber a resposta final, o povo tem que ver a novela.

Como você já comentou em entrevistas, quando iniciou a carreira, eram poucos os papéis para atores negros e sempre pontuais. Hoje você já vê alguma mudança nessa questão da representatividade no audiovisual? É inegável a mudança da representatividade e a contextualização dos artistas, atrizes e atores negros e diretores também no audiovisual brasileiro e internacional. Como eu digo sempre, há 30 anos nós éramos apenas traficantes, prostitutas, um PM, um garçom, um porteiro que falava “boa noite, senhor”. Hoje nós temos produtores, diretores, autores, estrelas brasileiras e do exterior, e personagens com um núcleo familiar estabelecido, com conteúdo, profundidade, com humanidade. É muito importante que se humanize o personagem negro, tirar daquele lugar do estereótipo, de falar de determinada maneira, ou ser o marginal ou a gostosona. Ter uma família, porque nós temos famílias, nós temos sentimentos, nós amamos, nós vamos à escola, nós vamos à universidade, nós pagamos conta. E isso vem crescendo. O Luiz Henrique Rios, tanto em Bom Sucesso, e agora também em Além da Ilusão, traz isso, um vasto elenco negro. E ambas as produções são sucesso. Em Bom Sucesso fiz um médico conceituadíssimo e agora, em Além da Ilusão, faço um delegado, uma outra figura dentro de uma escala social um pouco acima daquilo em que estávamos acostumados a ver há 20 anos. Eu sou muito grato ao Luiz Henrique, porque ele confia, acredita. E o resultado são produtos de sucesso, porque nós somos muito talentosos, nós vendemos. 53% da população brasileira é parda. E essas pessoas precisam se identificar, se ver contextualizados, fora apenas única e exclusivamente da favela, do tráfico, da prostituição ou da mulher desbocada ou do malandro. Ele precisa se ver como um pai de família, uma mãe de família, um amigo fiel... Então, está crescendo e espero que cresça cada vez mais.

Você iniciou a carreira no teatro, há cerca de 30 anos, e depois começou como dublador. Como a dublagem surgiu na sua vida? Desde pequeno eu sempre assisti muita televisão, fui muito ao teatro, cinema. E como sou curioso, desde novo, perguntava: “Quem está falando?”. Eu via atores como Sidney Poitier e Jane Fonda falando, mas eu sabia que não eram brasileiros. E os desenhos animados sempre me chamaram a atenção. Eu estava no teatro, fiz Unirio, e comecei a trabalhar com teatro infantil. No final, fui fazer um curso de dublagem para ver se tinha jeito para a técnica, porque é muito difícil. E dublador profissional tem que ser ator profissional. Eu fiz um curso na Urca com o Mario Jorge e a Mônica Rossi, dois ícones da dublagem brasileira. E ali eu vi que levava jeito, eles me incentivaram. Fiz seis meses de curso e logo que terminei, na semana seguinte atendi uma chamada de jornal de uma empresa, a extinta VTI, do produtor de teatro Victor Berbara. E ele pedia que atores e atrizes profissionais que quisessem ingressar no mercado de dublagem fossem até a empresa, porque ele estava montando um elenco para a produtora de dublagem. Fiz uma leitura de um texto selecionado na hora e fui aprovado. Aí começou a minha  carreira de dublador. E lá se vão 30 anos. Depois fui para a Herbert Richers e comecei dublar pelo Rio, São Paulo. E, acima de tudo, foi uma forma de me manter no mercado, porque teatro não dá muito dinheiro, raramente dá. E quanto eu comecei, há 30 anos, fazia uma ponta. Eu ainda não era escalado para uma novela. Então foi uma forma de permanecer no mercado, continuar fazendo o meu teatro e conseguir o pão nosso de cada dia.

Qual o seu conselho para quem quer ser dublador? A minha sugestão é: faça teatro, pise no palco, saiba ler, interpretar um texto, conheça a história da dramaturgia brasileira e mundial. Vá fazer escola de teatro, vá ter fundamento. Dublagem não é ter voz bonita, não é saber colocar na boca do “boneco”, do ator, da atriz ou do desenho animado. Dublagem é interpretação. E a base da interpretação para qualquer ator ou atriz é o palco.  E tenha muita disciplina, responsabilidade, honestidade e respeito pela história da dublagem brasileira. Nós somos considerados por todas as grandes produtoras mundiais a melhor dublagem do mundo. Você vai estar tentando entrar num mercado difícil, assim como em qualquer área do meio artístico. Eu tenho 32 anos de profissão, raros são os que ficaram, pessoas muito talentosas, tanto da minha escola de teatro, quanto da vida profissional. Então, tem que ter uma vocação grande, perseverança, fé e o respeito à sua arte, à arte do ator, da atriz. E dublagem é trabalho de ator, não é vaudeville, não é ter voz bonita, é saber que estou ali interpretando, dando o meu melhor.

E como está o mercado da dublagem no Brasil? Há 30 anos que dublo e há 30 anos que eu ouço que ela vai acabar. E não acaba. Cada vez mais ela se reforça, se transforma, evolui e acompanha todo o desenvolvimento tecnológico. Eu comecei na época das fitas u-matics, enormes, pesadas, a gente só tinha dois canais de áudios. Depois foi avançando e chegou a computação. E hoje a gente tem o home studio. Com a pandemia, eu montei um em minha casa. Então, o desenvolvimento da dublagem vem acompanhando o desenvolvimento tecnológico e o mercado também. Hoje temos vários streamings nos celulares, nas televisões, nos carros. O núcleo mais forte ainda é o Estados Unidos. Mas nós temos produções sensacionais vindas da Escandinávia, Espanha, França, Inglaterra, México, Índia, Nigéria, Turquia, o Brasil. Então, vem crescendo a demanda do audiovisual no mundo, o mercado está cada vez mais aquecido. Mas necessita de bons, ótimos e excelentes atores e atrizes, profissionais que tenham vocação, que saibam de sua importância de artista, de transmissor de uma mensagem e, acima de tudo, de mantenedores da língua portuguesa. E, como diz Caetano Veloso, a língua é a minha pátria. Nós levamos a nossa língua, a nossa identificação cultural às casas de pessoas que não dominam a língua original da produção. Então, nós temos essa importância. O mercado, claro, tem os seus altos e baixos, mas é um mercado estabelecido, que precisa de artistas responsáveis, disciplinados, honestos, artistas da interpretação, não somente de vozes bonitas.