Potência e talento de Isabelle Nassar, a Sara: De uma participação à peça-chave em Travessia

Ex-modelo e cria do teatro, atriz reflete sobre pressão estética, maternidade e a causa do feminismo


09 de fevereiro de 2023 00h07

Foto: Thaís Monteiro

Por Luciana Marques

Isabelle Nassar já tem uma longa carreira na moda e também nas artes. Mas o reconhecimento nacional veio agora ao dar vida à Sara, em Travessia, que marca a sua estreia nas novelas. O inusitado é que a atriz foi chamada só para uma participação no primeiro capítulo como a amiga de Débora (Grazi Massafera). Só que o destino fez com que a personagem voltasse, tornando-se peça fundamental para desvendar segredos da novela de Glória Perez. “Foi uma surpresa e um grande presente”, conta ela, que também é dramaturga e pesquisadora.

Aos 34 anos, Isabelle encarou de imediato o desafio e tem brilhado, principalmente na troca com o parceiro Marcos Caruso, o Dante. “Tem várias formas de entrar na atuação, principalmente na televisão. Cada um tem sua história e é legítima. Mas quando você pega uma novela em andamento, esse caminho de passar pelo teatro, estudar, te resguarda bastante”, constata. Mas a popularidade de uma novela das 8 também traz alguns ônus. A atriz, que é mãe de Maria, de 11 anos, da união com o empresário Alexandre Carvalho, com quem está casada há mais de 10 anos, teve que lidar com haters na internet.

Além de críticas por cenas sem maquiagem, Isabelle chegou a ser questionada quanto ao seu gênero por conta do rosto com traços fortes. “Sou uma mulher cis, branca. Entendo o meu lugar de privilégio. Quer falar sobre questão de mulher trans? Fala com elas. Mas quer falar de estereótipo, vamos falar”, pontua. No bate-papo, a atriz também conta como tem buscado cada vez mais estudar e focar o trabalho na causa das mulheres. “A gente não está preparado para lidar com a magnitude do feminino”, diz ela, que interpreta a Olga na segunda temporada da série Bom dia, Verônica, da Netflix.

Sara (Isabelle Nassar). Foto: Globo/Manoella Mello

Como foi para você saber que a personagem voltaria à trama?

Na verdade, existia uma possibilidade de uma volta, mas era remota. Eu entrei com uma participação. Sara sabia um segredo, que a Débora tinha um filho do Moretti (Rodrigo Lombardi) e achei interessante. Eu tinha muita vontade de trabalhar com o Mauro Mendonça Filho (diretor), com a Glória. Quando veio essa junção e rolou a participação, torcia imensamente para voltar. Mas a vida já tinha seguido e eu estava em preparação para uma série no Canal Brasil. Aí a Globo me ligou e falou para voltar, voltar contratada. E me disseram: você fica com a gente até o final da novela. E aí é só alegria!

Qual foi a sua visão do papel assim que começou a ler os capíulos?

Que Sara está vindo muito completa, com a possibilidade de eu vir com o diálogo mais aprofundado com o público, com cenas bacanas. Cenas com maquiagem, sem maquiagem, de drama. Então, foi um presente. Uma surpresa muito grande. Era uma coisa que eu já queria há muito tempo, que era fazer novela.

Quando você percebeu que ela voltaria tão forte? Te sinalizaram algo que queriam em especial para ela?

O texto da Glória diz... O trabalho do ator também é de decifrar códigos. Sentar, ler e criar a partir de um momento. Ela tem alguns códigos, é uma mulher, uma menina, que foi para a Itália com 18 anos. 20 anos depois ela volta para o Brasil como maquiadora, uma mulher que tem bagagem. Então, Sara é empoderada em algum momento. Ela não aceita meias-verdades, tem essa construção. Mauro me falou que queria que fosse uma mulher mais elegante. Ela está sempre com uma pele bem feita, tem um figurino um pouco mais duro. Fui me valendo disso para fazer a Sara, esse tom que escuta mais. Ela está sempre observando. Quando a gente começa uma novela tem uma coisa na cabeça, mas como a trama é aberta, essa magia da novela a gente vai descobrindo isso, descortinando através dos outros. Como eu não fiz a preparação de elenco, eu estou conhecendo os meus colegas de cena no dia a dia.

Sara e o Dante (Marcos Caruso) viraram peças-chave para resolver os mistérios dessa trama. Vem muita coisa por aí?

Está virando um conflito da trama. Claro que a Sara está inserida em procurar o filho da amiga, mas ela também está levantando umas bandeiras ali. O Moretti representa o patriarcado, que largou uma mulher solo. É seu filho, ela estava grávida. Agora vão vir a questão dos órfãos e tal. Ela vai levantando ali na fala dela poeiras.

Entrevista completa com Isabelle Nassar

Há semelhanças entre você e Sara?

Ela tem várias convergências comigo. Eu também fui uma menina que fui morar fora cedo, que voltei para o Brasil. Esse lugar de pertencimento eu sei o quanto me atravessa. Eu sei o quanto é difícil estar em um país que não é seu, não falar a língua. Mesmo que o personagem não tenha, que seja tão distante eu busco aproximar o máximo possível. E sobre o humano também. A gente não pode julgar nada.

O feminismo veio para a sua vida nessa época que morava no exterior ou é desde antes, da sua família?

Eu venho de uma família que já quebra padrões. Minha mãe é baiana e o meu pai é filho de imigrantes libaneses. Meu pai já é mais novo do que minha mãe, o que já não era comum. A religiosidade da família da minha mãe também sempre foi questionada. A minha mãe foi criada por uma tia que tinha um terreiro de candomblé dentro de casa. A família por parte do meu pai, o meu tio é homossexual desde a década de 80, era casado. Isso lá em casa sempre foi falado. Minha avó era professora de português, sempre gostou muito de literatura. Então eu cresci em um ambiente familiar que nunca na minha vida me proibiu de ser nada que eu quisesse. Pelo contrário, eu tinha que estudar, entregar ali as responsabilidades, mas poderia ser o que eu quisesse.

Foto: Thaís Monteiro

E quando, de fato, esse empoderamento foi colocado em prática por você?

Quando eu comecei a me relacionar ouvia: ‘com essa roupa você não pode ir’. E eu nunca tinha ouvido isso do meu pai. Quando eu fui para fora, pensava: ‘será que nesse mundo que a gente vive é certo isso?’ Essa força que também é uma fraqueza, que me pertence, é muito resultado desses acontecimentos como eu aprendi a me impor e a colocar o meu limite. Depois fiz Direito, mas não concluí, teatro e a pós-graduação em Filosofia foi muito mais para conviver com mulheres que já pensam no feminismo.

Você acabou sendo vítima de haters, questionada por aparecer em cena sem maquiagem e até em relação a gênero. Como você lida com isso?

Eu agradeço de estar acontecendo isso comigo agora porque eu tenho como raciocinar. Não em relação a gênero, muito mais às cenas sem maquiagem, críticas sobre minhas olheiras. Em relação ao gênero, falar que eu sou mulher, deveria bastar, né? Quando passa da curiosidade eu falo: ‘eu sou uma mulher cis, branca’. Entendo o meu lugar de privilégio. Quer falar sobre questão de mulher trans? Fala com elas. Mas quer falar de estereótipo, vamos falar. O que é o diferente que está incomodando? É a olheira? Por que eu não posso fazer? Vamos falar de dramaturgia, a personagem vivenciou um luto. Já perdeu alguém? Quem perde alguém não quer nem tomar banho. Pensando na dramaturgia, vamos fazer sem maquiagem e gerar esse estranhamento. A gente não está preparado para lidar com a magnitude do feminino, da mulher como um todo, como ela é.

Você fez peças, séries, mas agora com a novela ficou conhecida nacionalmente. Acha que demorou para ter esse espaço?

Hoje eu entendo que está no momento certo. Entendo que as coisas aconteceram como tinham que ser, em todos os aspectos, na estrutura de casa atualmente. Olhando para atrás, claro que estou construindo a minha carreira, ser ator é isso, sempre estudando, caindo, levantando, indo... Mas eu fico muito feliz pelos lugares que passei, o teatro é minha pátria, o lugar que eu vou sempre revisitar, tem peças em andamento, como Era Medéia, continuo escrevendo meus poemas. Esse lado sagrado é o que me resguarda em todos os meus trabalhos. Mas falo para os jovens atores que acham que esse momento nunca vai chegar, que chega. Vão fazendo suas coisas, escrevendo seus projetos, com a mudança de governo com certeza as leis de incentivo vão ficar mais incorporadas, apostem em seus projetos autorais, aprendam a fazer produção cultural, escrever seus projetos em leis. E estude, se conecte, que uma hora vai chegar. E chega de uma forma como você nunca espera, com uma participação no primeiro capítulo, como aconteceu comigo.