Sandra Pêra e o mergulho no texto de Clarice Lispector em monólogo que faz refletir sobre a velhice

À Procura de Uma Dignidade abre temporada do Teatro Com Bolso, criado por Ana Beatriz Nogueira, para transmissões online


20 de agosto de 2021 00h33

Foto: Ana Basbaum

Por Luciana Marques

Ainda em meio à pandemia e num momento bastante difícil para as artes, Sandra Pêra se reencontrou com o palco de uma maneira especial. Primeiro, porque o convite para estrelar o solo À Procura de Uma Dignidade partiu da amiga e também atriz Ana Beatriz Nogueira, depois, porque seria um monólogo. E, claro, por poder mergulhar no conto homônimo de Clarice Lispector, do livro Onde Estivestes de Noite, de 1974. “Estar sozinha em cena, dizendo todas aquelas maravilhas que só Clarice Lispector diz, dá arrepios, calafrios”, fala Sandra, referindo-se ao texto, que faz refletir sobre perda de memória, solidão desejos e medos na velhice.

A peça, com transmissão online em versão pré-filmada através da plataforma Sympla, conta a história de uma mulher, de quase 70 anos, moradora do Leblon, que sai para um evento e se perde, indo parar nos corredores subterrâneos do Maracanã. Em busca de uma porta de saída, acaba mergulhando numa jornada interna em que se confronta com seus mais profundos medos e desejos. “É uma realidade que pode ser terrível para a maioria das mulheres, a sua sexualidade, seus desejos, paixões, fantasias geralmente são guardadas em um ponto secreto da sua memória para a posteridade”, reflete.

Com direção de Ana Beatriz Nogueira, a peça é a primeira inédita de 2021 do Teatro Com Bolso, espaço criado e equipado por Ana, em sua própria casa para transmissão online de peças e shows ao vivo e pré-filmados.

Foto: Ana Basbaum

O que mais cativou você no convite da Ana Beatriz Nogueira para fazer À Procura de Uma Dignidade? A primeira coisa que me cativou foi o convite feito pela Ana Beatriz. Conheço a Aninha há muito tempo, mas faz pouco tempo que nos aproximamos e, de repente, um dia ela me fez o convite. A outra primeira coisa foi a ideia de um monólogo. Estar sozinha em cena, dizendo todas aquelas maravilhas que só Clarice Lispector diz, dá arrepios. Estar só, dizendo, sentindo, fazendo pausas que sejam preenchidas de significados, esquecendo textos e dando um jeito nisso, recolhendo meus gestos largos, meus excessos, tudo sob a batuta da Ana Beatriz e da Clarisse Derzié, que é a assistente de direção.

Os textos da Clarice Lispector são sempre maravilhosos, do cotidiano, com epifanias... O que mais instigou você nesse conto em especial? Viver essa mulher que se perde no subterrâneo do Maracanã, depois quase não achar o caminho de volta pra casa, com todos os questionamentos de uma mulher de quase 70. E hoje em dia esse número 70 rejuvenesceu um pouco, aos 66 não vivo esses terrores, mas os trato com respeito. Viver isso tudo é um grande desafio para uma cantora, atriz como eu, de muitas comédias, musicais, shows.

Qual a principal mensagem da peça, na sua opinião? Acho que são pequenas mensagens que Clarice nos deixa e outras que talvez, ela mesma nem tenha pensado, mas basicamente trata do esquecimento, essa doença terrível, não só a doença física que destrói tantas mentes geniais, mas o lugar do esquecimento onde os mais velhos são deixados, a solidão onde os mais velhos também se colocam, por acharem que a vida é assim. Preparam-se para começar a envelhecer, mas seus corpos têm vontade própria, tem boas memórias.

Hoje se fala muito em empoderamento feminino, da mulher poder fazer escolhas... Mas ainda há aquelas de meia-idade que, talvez, pela criação, mantém certos medos e receios sobre tomar atitudes, sobre a própria sexualidade. Como você avalia isso, percebe já algumas mudanças nessas mulheres que tiveram criação de forma mais conservadora? Uma parte grande de mulheres hoje está na vida, lutando por seus direitos desejos e fazendo isso por mais tempo, porque hoje as pessoas começam a ficar mais velhas dos 80 pra lá. Mas conheço muitas mulheres que se preparam para a velhice, mudam radicalmente de hábitos, mulheres que eram louquíssimas, lindas, hoje estão quietas em seus lares, com dinheiro guardado para pagar enfermeiras na velhice. Acho que é uma também, não sou assim. Tento manter um corpo que me agrade, um peso legal, tento exercícios e adoro ver gente.

Foto: Ana Basbaum

A personagem passa por uma situação que a faz rever quase que toda a vida dela. Você já passou por algo assim? Nunca passei algo próximo do que essa mulher passa, mas já estive muito perto de queridas amigas que tiveram vidas transformadas por doença, tragédias ou simplesmente por medos, questionamentos. Mas sou uma virginiana pura, nada passa em vão na minha frente. Tive perdas grandiosas na minha vida e dores agudíssimas, mas já entendi que a dor de cada um é a dor de cada um, apesar dos melhores amigos e amores. Mas eu quando aprofundo as dores levo para um lugar dentro de mim que é macio, sempre tento levar com inteligência e alguma poesia, porque gosto de me sentir em paz.

Você acha que há uma idade limite para a mulher se “libertar” de certos tabus, até em relação à sexualidade, antigamente tão reprimida? Não acredito em idade limite. Acredito em corpo, mente livre. Sempre me senti livre, apesar de ter sido educada por gente de teatro e televisão, tive uma mãe que me queria casta. Mesmo eu adolescente, tive meus sonhos de festa de quinze anos, casamento na igreja virgem.... Nada disso aconteceu e o que foi acontecendo de diferente foi deixando a minha vida muito gostosa. Depende primeiramente da força e daquilo que a mulher almeja para sua vida, mesmo que a sua volta tentem impedi-la.

Qual o maior desafio para vocês atores, de mergulhar num projeto teatral online e como tem sido essa experiência pra você? O projeto online foi o jeito de não parar totalmente. Esse projeto da Ana Beatriz é lindo. A pessoa abre a casa e faz um palco, produz, é lindo. De tirar o chapéu. Mas a estranheza para mim é não ter a resposta do público, ao vivo. Porque o público molda o espetáculo. Mas é o que temos, e é surpreendente.

Quando você acha que o teatro conseguirá retornar a todo o vapor e se você tem esperança de que essa crise passe logo e de que os governantes enxerguem definitivamente a importância da cultura para um País? Bom, amiga, em relação a "governantes", não sou otimista não. Eles não têm ideia do que seja cultura, gente ignorante, se fechar os olhos quase posso ouvir as besteiras que conversam numa mesa de almoço de domingo, gente ruim. Em relação ao vírus, vamos indo devagar e sempre com esses políticos que temos que engolir, mas uma hora vai passar, mas eles não ligam para a cultura. Sim, o teatro vai voltar, teatro sempre estará presente, não sei se a todo vapor. No Rio de Janeiro os teatros quase acabaram todos, conta-se nos dedos os que estão de pé. São Paulo tem mais, então, veja bem, temos que cuidar de muita coisa importante que foi destruída por gente incompetente e depois trazer o público que gosta de teatro de volta para assistir coisa boa.

À Procura de Uma Dignidade. Drama. Até 26/09. Sábados e domingos, às 21h. Transmissão online em versão pré-filmada. R$10,00. Ingressos: https://www.sympla.com.br/teatrocombolso Duração: 40min. Indicativa: 14 anos.